sexta-feira, 28 de maio de 2010

Oceano vale mais do que petróleo

   Mais quantas catástrofes ecológicas serão ainda necessárias para concluir que a exploração marítima de petróleo deve ser abandonada enquanto todas as condições de segurança não forem garantidas? Embora atrasadíssima, a decisão tomada anteontem pelo presidente Barack Obama de suspender novas prospecções de petróleo no Golfo do México, além de moratória de mais seis meses na costa atlântica, comprova que seu governo reconhece sérias falhas no processo de fiscalização, citando, inclusive, indícios de corrupção nas relações entre agências regulatórias e indústria do petróleo.

   O alerta serve também para o Brasil.
   Vinte de abril de 2010 entrou lamentavelmente para a História como o dia do mais grave vazamento de óleo dos Estados Unidos. Após 37 dias, ainda não se conseguiu estancar o derramamento em Deepwater Horizon, área onde se localiza a plataforma da British Petroleum (BP), no Golfo do México, no litoral dos estados de Louisiana, Mississippi e Alabama, que vinham duramente se recompondo dos enormes estragos causados pelo furacão Katrina, em 2005.
   Os números são impressionantes: já são 85 milhões de litros de óleo despejados (podendo chegar a 340 milhões), comparados aos 40 milhões vazados do petroleiro “Exxon Valdez”, na região do Alasca, em 1989.
   Pesquisas feitas pelo “New York Times” demonstram que o pior vazamento de óleo de todos os tempos ocorreu, em 1991, quando as forças militares iraquianas se retiraram do Kuwait e abriram os reservatórios, largando 2 bilhões de litros de óleo no Golfo Pérsico.
   Que me desculpem os defensores da indústria petrolífera e da exploração do pré-sal, mas não podemos continuar destruindo nossos ecossistemas, fontes de riqueza e sobrevivência de futuras gerações, sem criar clara consciência ecológica e universal dos altos riscos envolvidos.
   Esta visão imediatista das indústrias que requisitam cada vez mais matérias-primas, como o petróleo, para fabricar seus produtos deve ser reformulada gradualmente em busca de fontes de energia renováveis, que não causem danos graves à natureza ou à saúde. O fortíssimo lobby industrial acaba provocando o nocivo ciclo do lucro a qualquer custo sem que se invista previamente em estudos científicos e tecnológicos cada vez mais precisos para calcular os custos colaterais destas atividades petrolíferas, antes de serem autorizadas com rigoroso monitoramento.
   O episódio do Golfo do México serve de advertência aos governos e candidatos à Presidência ansiosos em dividir o bolo das receitas antes mesmo de se deterem detalhadamente nas minúcias deste processo de exploração nas profundezas do nosso oceano.
   Por um lado, as águas do Golfo do México são consideradas “máquina” de produção de alimentos altamente nutritivos. “Em 2008, as pescas comerciais de cinco estados americanos desta região produziram 590 mil toneladas de peixes e crustáceos avaliadas em US$ 661 milhões” (o equivalente a R$ 1,3 bilhão), informou a Agência de Proteção do Meio Ambiente dos EUA ao site americano Grist. Portanto, as perdas econômicas e sociais são incalculáveis a médio e longo prazos.
   Por outro lado, as empresas petrolíferas sabem bem que as novas descobertas no fundo do mar representam o seu futuro. O Golfo do México produz um terço da produção dos EUA, o equivalente a 1,7 milhão de barris por dia, procedentes de mais de 3 mil metros no fundo do mar. Ao lado do Brasil e da costa ocidental da África, o Golfo é visto como promissora fonte de petróleo.
   Seria uma ilusão acreditar que da noite para o dia poderíamos dispensar o combustível dos carros e renunciar ao petróleo como fonte principal de energia. Mas se as explorações não forem suspensas para análises e severas fiscalizações, como agiram os EUA, podemos chorar por novas catástrofes. E de nada adiantará multar as companhias por seus erros para tentar diminuir a responsabilidade porque os danos são, obviamente, impagáveis.
   É bom lembrar que a avaliação dos dispositivos de segurança das nossas plataformas é feita exclusivamente pelas empresas petrolíferas (resolução 43/07 da Agência Nacional do Petróleo), fato extremamente preocupante.
   Ranulfo Bocayuva l Jornalista e dirtetor-executivo do Grupo A TARDE

terça-feira, 18 de maio de 2010

Buraco negro entre governo e sociedade - O Estado de S. Paulo


Por Arnaldo Jabor


   Diante do pedido de urgência para se votar o projeto da "ficha limpa", irritado com a pressa de mais de 1 milhão e 800 mil assinantes pedindo aprovação, o senador Romero Jucá produziu uma frase definitiva que ilumina o País: "Este projeto Ficha Limpa não é um projeto do Governo; é da sociedade..."
   Com raro e inspirado brilho, o senador, líder do governo Lula, o homem das sete fazendas imaginárias, deu-nos um show de ciência política. A frase é uma síntese do Brasil. É como se o inefável Jucá dissesse: "O tempo do governo é diferente do vosso. O problema é de vocês ? apressadinhos comem cru."
   Sérgio Buarque de Holanda teria aplaudido este belo resumo de nossa organização política e poderia completar, como em seu livro seminal Raízes do Brasil: "...para o funcionário patrimonial a própria gestão política se apresenta como assunto de seu interesse particular; as funções, os empregos e os benefícios que deles aufere, relacionam-se a direitos pessoais do funcionário e não a interesses em que prevaleçam a especialização das funções e o esforço para se assegurarem garantias jurídicas aos cidadãos (...) a democracia no Brasil sempre foi um lamentável mal-entendido. Uma aristocracia rural e semifeudal importou-a e tratou de acomodá-la a seus direitos e privilégios, os mesmos privilégios que tinham sido no Velho Mundo o alvo da luta da burguesia contra os aristocratas. E assim puderam incorporar à situação colonial, ao menos como fachada ou decoração, alguns lemas que pareciam os mais acertados para a época, exaltados nos livros e discursos..."
   Para políticos como Jucá, a única "democracia" é um vago amor pelos amigos, uma poética queda para a camaradagem, a troca de favores, sempre com gestos e abraços risonhos, na doce pederastia de uma sociedade secreta. Somos tecnicamente uma "democracia", que é vivida por eles como porta aberta para oportunismos, pois a "cana" é menos dura...
   A frase iluminada de Jucá mostra-nos que há uma fenda secular, um abismo entre sociedade e governo, que há uma inversão de valores ? o governo tem vida própria e a sociedade existe apenas para legitimá-lo. O Estado é uma ilha de interesses políticos habitado por uma "sociedade" feita de 513 deputados, 82 senadores, funcionários públicos, etc... A frase de Jucá pode ser montada com o belo chiste do Tuma Jr., com seu corpanzil de leão-marinho barbudo: "Tirem o cavalo da chuva... Não vou sair!" Sair por quê? Sair de sua "casa", de sua "propriedade", logo ele que sabe dos segredos de alcova de seus colegas, ele, que administrou ate o caso de Celso Daniel como delegado? "Não vou cair calado!", berrou. Não é sublime tudo isso? Nunca antes, em nossa história, alianças tão espúrias tiveram o condão maravilhoso de nos ensinar tanto sobre o Brasil. A cada dia, nos tornamos mais sábios, mais cultos sobre essa grande chácara de oligarquias.
   Lula teve a esperteza política de usar essa anomalia secular em proveito de seu governo. Todos os presidentes têm de fazer isso, senão não governam, sabemos. Mas, Lula protegeu demais as mentiras para que a falsa verdade do País permaneça. Viciou malandros com uma dieta gorda, cevou-os com uma fé na impunidade sem limites que abriu um caminho difícil de fechar. Aliás, esta foi a realização mais profunda do governo Lula: o escancaramento didático do patrimonialismo burguês e o desenho de um nascente patrimonialismo de Estado.
   Sinto nesses sintomas parlamentares a volúpia de ir contra o senso comum, contra o que a maioria pensa; há uma postura sádica de contrariar a população, de proteger uma obscuridade secreta, de defender o direito à mentira como um bem precioso, um direito natural. Eles se banham na beleza de um "baixo maquiavelismo", no cinismo dos conchavos, atribuem uma destreza de esgrima às chantagens e manipulações. "Esperteza" é um elogio muito mais doce do que "dignidade". Lembram da resistência espantosa de Renan para não sair da presidência da Câmara? Isso parece até um "heroísmo" em prol do personalismo colonial atávico, contra esta "violência" que cidadão "menores" chamam de "interesse público".
   Precisamos entender que o Atraso é um desejo, uma ideologia. Eles são fabricados entre angus e feijoadas do interior, em favores de prefeituras, em pequenos furtos municipais, em conluios perdidos nos grandes sertões. O atraso dá lucro.
   Se o desejo da sociedade se impuser, se a transparência prevalecer, como viverão felizes as famílias oligárquicas? Como vão vicejar as fazendas imaginárias, as certidões falsificadas, os rituais das defraudações, as escrituras e os contratos superfaturados? Que será da indústria da seca, não só da seca do solo, mas a seca mental, em que a estupidez e a miséria são cultivadas para criar bons serviçais para a burguesia semifeudal? Como ficarão as doces camaradagens corruptas em halls de hotel, os almoços gordurosos, as cervejadas de bermudão, as gargalhadas, as "carteiradas" autoritárias, os subornos e as chaves de galão? Como serão os jantares domingueiros, como manter a humilhação e a fidelidade consentida das esposas de botox, o respeito cretino dos filhos psicopatas? Como se manterá a obediência dos peões, dos capatazes analfabetos? Que será do "sistema" cafajeste e careta que rege o País?
   Os congressistas talvez acolham o projeto "Ficha Limpa" pela pressão popular e pela proximidade das eleições; mas, tudo a contragosto, com medo de que sejam desarmados os curraizinhos onde paparicam seus eleitores, com medo de perder o frisson dos jaquetões lustrosos, dos bigodes pintados, das amantes nos contracheques, das imunidades para humilhar garçons e policiais.
   Eles formam um país isolado. Eles detestam tudo que os obrigue a "governar" o outro país, a chamada "sociedade". Estão no Congresso para se proteger de fichas sujas, para levar "vantagem em tudo, certo"? Senão, qual a vantagem da política? 

*Texto de autoria de Arnaldo Jabor publicado no jornal "O Estado de S. Paulo" e divulgado no site do Estadão

domingo, 16 de maio de 2010

Nós no país da ética light - Renato Janine Ribeiro

O Estado de S.Paulo


   As maracutaias do poder nos jogam num 'Brasil do B' em que pagamos tudo dobrado.
   Nós, brasileiros, vivemos o risco de nos tornar um povo blasé. Não passa mês sem a revelação de práticas pouco ortodoxas de nossos homens públicos. Um deles conseguiu do Judiciário, faz um ano, a censura a este jornal. Há dias, soubemos que um dirigente da área de segurança pública mantém amizade e talvez negócios com um suspeito de crimes. Tenho sempre sustentado que a corrupção não aumentou, o que seria lastimável, e sim que cresceram a percepção da corrupção e a aversão a ela, o que é positivo. Devo confessar que esta convicção é o que me poupa de ser blasé. Permite-me esperar que, mesmo num prazo mais demorado do que desejaria, este país se torne um lugar sem miséria, sem injustiça social, sem injustiça, em suma, um país decente.

   O homem público obedece a uma ética diferente da privada? Esta discussão é crucial. Fernando Henrique Cardoso citava Max Weber: enquanto o indivíduo particular - qualquer um de nós - pode pautar suas ações pela moral de princípios, por valores como os dez mandamentos, o político tem de considerar os resultados que sua ação terá. A ética do político seria de resultados, a dos cidadãos seria uma ética de valores ou princípios. FHC tem razão, no sentido de que não basta o político ser honesto: precisa agir para melhorar nossa vida. Mas o problema é que, ouvindo isso, supomos que o homem público tenha uma ética com deságio. Para governar, ele precisaria unir-se a políticos fisiológicos. Na melhor das hipóteses, nossos políticos honestos viveriam uma opção trágica: ou se mantêm honestos e não conseguem aprovar nada que melhore o Brasil, ou cedem a seus aliados ruins - cedendo o menos possível - e aí asseguram algum avanço econômico, social. É um cálculo penoso de custo-benefício. Estou convicto de que os políticos éticos, que os há, vivem essa escolha de sofia.
   Mas não é pouco achar que a vida pública segue uma ética reduzida, light, empobrecida? E se o político devesse ser mais ético, e não menos, que o cidadão privado? Posso estar sendo otimista demais, mas a meu ver quem sinaliza que tem preço acaba, sim, tendo preço. Mostra que pode ser comprado. Já um homem público, em qualquer poder que seja da República, que se mostre honesto estará mais afinado com os sinais de um tempo que parece prezar a transparência e desprezar a corrupção. Pode ser esta a base que falta para finalmente construirmos nossa república: o regime que valoriza a res publica, a coisa pública, o bem comum. A história dispõe de exemplos neste rumo, talvez raros mas veementes - políticos que apelam ao povo, à opinião pública, quando algo no seu meio se mostra podre, errado, inaceitável.
   Dá para aceitar que a proporção de processados, entre os políticos, seja maior do que entre os cidadãos que eles representam? Pouco após o fim da ditadura, um cidadão ofendeu o jornalista Sergio Cabral (pai), dizendo que o parlamento estava cheio de corruptos. Cabral respondeu com verve: "Tenha certeza de que todos os parlamentares foram eleitos e, portanto, todos os cidadãos estão representados por eles, inclusive o senhor". Infelizmente, porém, esse inteligente lembrete - de que os eleitos nos representam - hoje só conta metade da história. É verdade que quem elege ladrões é o povo. Mas também é fato que o sistema é organizado de modo que, às pessoas dignas, a política não soa como a carreira mais adequada. Será preciso muito para mudar isso. Um passo importante pode ser dado com a lei da Ficha Limpa. Também é boa a decisão da Justiça de divulgar na internet o prontuário dos candidatos. Mas o fundamental é não desistir da política, é exigir que os eleitos se pautem por valores que sejam os nossos.
   Acostumamo-nos a viver num país paralelo, um Brasil "do B". Os leitores deste jornal pagam impostos para sustentar a saúde, a educação e a segurança públicas, mas também pagam um seguro-saúde, uma escola particular e um segurança para sua rua ou prédio. Ou seja, pagamos duas vezes a mesma coisa. Isso se justifica? Como não se confia plenamente no Estado, centenas de milhares de brasileiros são voluntários em ONGs. É uma bela atitude - que vai mudar o Brasil. Mas por que aceitamos que o Estado - municipal, estadual ou federal - cumpra só parte de suas tarefas? Por que admitimos essa duplicação de nosso país, um que elegemos e pagamos mas em que não acreditamos, outro que também pagamos e no qual acreditamos mais? O país do Estado e o país da sociedade têm de ser um só. A decepção com os políticos é cara: ela nos força a trabalhar dobrado para, no fim das contas, termos uma sociedade e uma república incompletas.


RENATO JANINE RIBEIRO É PROFESSOR TITULAR DE ÉTICA E FILOSOFIA POLÍTICA DA USP







sexta-feira, 14 de maio de 2010

O fim de uma Europa - Gilles Lapouge – O Estado de S.Paulo

 

 A Europa salvou a Europa. Como se decidiu a isso? Ela viu que o incêndio iniciado na Grécia estava prestes a alcançar todo o continente, carbonizando de passagem a maravilha europeia, sua única glória, a moeda comum. E, diante do perigo, a Europa também agiu e derramou sobre as chamas 750 bilhões. Funcionou.
   A Europa está salva, mas morta. Pelo menos a Europa tal como existiu desde o início da sua construção, em 9 de maio de 1950, há 60 anos.
   Uma longa aventura chegou ao fim nestes dias negros de maio de 2010. O que resta desses 60 anos é uma União falida, Estados em debandada, ressentimentos dos países e das pessoas, nenhuma instituição comunitária legível, um Banco Central Europeu desonrado por sua cegueira e obrigado, a partir de agora, a se submeter aos Estados europeus.
   Uma única Europa sobreviveu ao desastre. A Europa dos egoísmos. Cada país trabalhou em causa própria. Mesmo os seus gestos aparentemente generosos, se observarmos bem, o que indicam O egoísmo nacional.
   Exemplo: Alemanha e França, repentinamente unidas quando se viram à beira do precipício, colocaram a “mão no bolso” e deram à Grécia muitos bilhões de euros. Por que essa generosidade tardia? Para salvar a Grécia? Sim, claro, mas sobretudo para salvar os bancos estrangeiros que emprestaram loucamente muito dinheiro para esse país, dinheiro que essas instituições perderiam se os gregos pedissem falência.
   Ora, e que bancos são esses que emprestaram para a Grécia e era preciso salvar? Bancos franceses e alemães, exatamente. Em outros termos, o generoso plano de salvamento da Grécia, patrocinado por França e Alemanha, foi também um plano para salvar bancos alemães e franceses.
   Uma outra fraqueza da União Europeia: ela jamais teve líderes confiáveis. Durante esta crise, o silêncio dos responsáveis de Bruxelas foi impressionante. O pobre chefe da Comissão Europeia, o português José Manuel Barroso, à sua nulidade habitual acrescentou um outra qualidade: a ausência.
   Por seu lado, o novo presidente da Europa, esse belga cujo nome é Herman van Rompuy e cuja figura é impossível de discernir, não disse uma palavra. Do lado do presidente do Banco Central Europeu, Jean-Claude Trichet, silêncio! Somente os políticos se manifestaram.
   Sobretudo Nicolas Sarkozy, que falou a respeito em todos os microfones que via e, pelo menos desta vez, falou bem. Foi ele quem sacudiu toda essa gente entorpecida e obrigou os dorminhocos a abrirem o olho.
   Essa crise terá tido, pelo menos, o mérito de soar o alarme e esclarecer as falhas da construção europeia? A constatação mais simples é que foi estúpido impor uma mesma moeda a 16 países que são separados por tudo: força, hábitos, leis, necessidades. Como impor uma mesma moeda a um gigante racional e laborioso como a Alemanha e a um pigmeu irracional e frívolo como a Grécia? Um outro ponto fraco da União Europeia é a sua Constituição (ou seja, o Tratado de Maastricht e o Tratado de Lisboa), um edifício incoerente.
   Por exemplo, o Tratado de Maastricht, que estabeleceu a criação do euro, proíbe aos outros países socorrerem um país enfermo. Se essa regra tivesse sido respeitada, Bruxelas assistiria friamente ao naufrágio da Grécia.
   Assim, foi violando seus próprios estatutos, que a UE finalmente se resignou a partir em socorro dos gregos.
   Mas a responsabilidade da Europa ou da zona do euro é ainda maior: não só o euro não se viu livre de todos os perigos, como foi ele próprio que gerou a enfermidade que quase acabou com a Grécia (e amanhã, talvez, Espanha, Portugal, Irlanda e até França). De que maneira? O euro, ao privar cada país da própria moeda, favoreceu a irresponsabilidade.
   Antes, se a economia de um país fosse administrada de maneira absurda, a moeda nacional era atacada. Duas soluções então, eram possíveis: ou a situação era enfrentada com medidas draconianas para salvar essa moeda, ou então os governos procediam a uma desvalorização. Hoje, contudo, com o desaparecimento das moedas, a desvalorização é impossível. Por outro lado, por que um país cuidaria do seu equilíbrio monetário, orçamentário e financeiro já que, de qualquer maneira, não existe mais uma moeda nacional a defender? Foi portanto o euro, e também a UE, que favoreceu esse fabuloso descuido de quase todos os países europeus, exceto a Alemanha.
   O pior é que ninguém tinha consciência disso. Foi preciso a crise explodir para descobrirmos a que ponto a existência do euro e também da UE aceleraram o desleixo com as regras contábeis mais elementares.
   Hoje sabemos que, tendo como abrigo a vitrine reluzente que é a UE, a Europa tornou-se um “campo de ruínas”.
   A Grécia está deteriorada, claro. Mas os outros países não estão em situação muito melhor. Por toda a parte o que se descobre, com espanto, são dívidas monumentais, intoleráveis, déficits orçamentários insanos, estatísticas maquiladas, fraudadas. Compreende-se o mecanismo dessas condutas absurdas: os países se isentaram de qualquer responsabilidade, já que ela era comunitária e não mais nacional. O que o euro produziu foi uma gigantesca máquina de imprimir dinheiro. Invisível e infernal.
   Nesse sentido, a crise da Grécia, seguida pela do euro, foi um teste saudável. Obriga os países-membros a abandonarem o terreno do imaginário para entrar no do real. Ontem ainda, antes do colapso da Grécia, os países viviam de créditos. O caso da França é exemplar: surgia uma enfermidade? O dr. Sarkozy chegava imediatamente com sua pequena maleta. Mas, dentro dela, o único remédio era este: empréstimos.
   O caso da França não é único. A Inglaterra tem uma dívida vertiginosa. Espanha, Portugal, Itália, todos os países europeus ao abrigo do euro perderam o senso de realidade e se refugiaram numa economia imaginária. E agora a realidade chega a galope. Planos de austeridade ferozes surgem de todos os lados, em Madri, Roma, Londres, Paris, Bucareste.
   Como agir de outro modo? Mas o preço será insuportável. Sabemos os efeitos desses planos de rigor: a produção vai estagnar, até recuar, o desemprego deve explodir. Talvez a inflação. E, como na Grécia, a população sairá às ruas.
   Nesse sentido, podemos dizer que, 60 anos após seu nascimento, a Europa está morta. Ou melhor, “uma” Europa morreu. A “Europa paternalista”, a velha carroça que soube apenas esmagar os Estados sob uma montanha de regulamentos.
   Nada para agradar. Nenhum projeto. Nenhuma exaltação.
   É esse o sintoma mais inquietante do “mal europeu”: salvo no seu início – no término do massacre que foi a 2ª Guerra -, a Europa jamais foi o sonho dos povos. E, depois da crise atual, o desencanto é total. A Europa não faz mais ninguém sonhar.
   Um jornal holandês propôs que a Holanda saia da zona do euro e crie uma pequena Europa, associando-se com o único país bem administrado do continente, a Suíça. A Alemanha sofreu com o euro mais do que desejava. A Inglaterra, que sempre detestou a moeda única, elegeu um primeiro-ministro eurocético. A França tem problemas demais com Sarkozy.
   O tempo urge: se queremos que a crise da Grécia e do euro se limite a matar “uma Europa” e não “a Europa”, é preciso agir rápido. Acabar com os desatinos que essa Europa azeda, burocrática, desconfiada, por tanto tempo nos impingiu. E inventar uma outra Europa, não irresponsável e imaginária, mas realista.
  Realista? Sim, ou seja, uma Europa capaz de nos fazer sonhar.

TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO
O AUTOR É CORRESPONDENTE EM PARIS

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Rolling Stones - Plundered My Soul - New Song!

                                          http://migre.me/F1im

Caminho Suave - Dora Kramer

                                                          
                                                     DEU EM O ESTADO DE S. PAULO


   De tudo o que se vê no noticiário sobre o caso do secretário Nacional de Justiça, Romeu Tuma Júnior, flagrado em gravações da Polícia Federal em conversas que caracterizam relações de amizade entre ele e um acusado de integrar a cúpula da máfia chinesa em São Paulo, chama atenção a quantidade de malabarismos feitos pelo governo para não melindrar o secretário.
   Ontem, o Ministério da Justiça anunciou seu licenciamento pelo período de 30 dias, para em seguida ser desmentido por Tuma Júnior que, no comando das operações, optou por férias de 15 dias.
   Fosse qual fosse o modelo, pela natureza do cargo e dos variados fatos surgidos após a divulgação das primeiras gravações (tentativa de relaxamento de um flagrante de apreensão de dólares no aeroporto de Guarulhos, suspeita de intervenção de Tuma Júnior na emissão de vistos ilegais e liberação de mercadorias de pessoas investigadas pela PF) o afastamento deveria ter sido imediato.
   Por precaução no tocante às investigações ou para preservar o governo federal como um todo, independentemente do que venha a ser revelado sobre a extensão da amizade dele com o acusado Li Kwok Kwen.
   Por iniciativa por superiores teria denotado apreço à compostura.
   Passaram-se dias sem que ninguém soubesse o que fazer simplesmente porque, argumentava-se, o secretário era uma indicação direta do presidente Luiz Inácio Lula da Silva em atendimento ao senador Romeu Tuma, do PTB de São Paulo.
   Caberia, seria de se supor, ao presidente demiti-lo. Mas, não era seu subordinado direto.
   Esperava-se, então, uma decisão do ministro da Justiça. Mas passou-se a contar com a iniciativa de Tuma Júnior que, mirando-se em exemplos anteriores vindos de cima e segundo os quais quanto mais largas as costas mais quentes os panos, não se mexeu.
   No Palácio do Planalto engendrou-se então uma solução desenhada para ser interpretada como "pressão" para Tuma Júnior pedir para sair: foi dado a ele prazo de cinco dias de prazo para se explicar à Comissão de Ética Pública da Presidência.
   Logo a tão desgastada comissão, desautorizada por Lula numa queda de braço em 2008, com o então ministro do Trabalho, Carlos Lupi, e que em todas as batalhas em que se envolveu a ética saiu vencida.
   Não será agora que contabilizará sua primeira vitória. Apenas servirá como aval decorativo na construção de um caminho suave à retirada do secretário.
   Conto "das bases". Ainda hoje, 50 anos depois de instalada a capital da República no Planalto Central, deputados e senadores insistem em ignorar que o mandato de representação federal é exercido em Brasília.
   O trabalho "nas bases" diz respeito às respectivas sobrevivências políticas, que deveriam financiar com outras fontes que não o dinheiro do contribuinte que lhes paga salários e benefícios para um expediente de segunda a sexta-feira na capital.
   Mesmo assim surgem propostas, como a do líder do governo Cândido Vaccarezza, em boa hora negada pelo presidente da Câmara, Michel Temer, de antecipar o recesso do meio do ano para antes da Copa do Mundo, a fim de liberar mais cedo suas excelências para as férias e a campanha eleitoral.
   Note-se, período em que se afastam no atendimento a interesse unilateral, pois o contrato das urnas prevê quatro e não três anos e meio de mandato com direito a licença-campanha e bolsa Copa do Mundo.
   Vaccarezza já avisou que vai insistir.
   Conto da desfaçatez. Pode ser chamado de gratuito o horário eleitoral que custa R$ 851 milhões ao Estado? Isso só com a renúncia fiscal decorrente da compensação às emissoras de rádio e televisão pelas perdas com a publicidade comercial que deixam de exibir, sem contar a parcela do Orçamento destinada anualmente ao Fundo Partidário.
  O horário é gratuito para os partidos que ainda se dão ao desfrute de dizer que enquanto não for instituído o financiamento público as campanhas eleitorais continuarão "reféns" do caixa 2.

sexta-feira, 7 de maio de 2010

Licença para roubar - NELSON MOTTA - O Estado de Sao Paulo

                                                                

Não é preciso criar nenhuma lei nem fazer qualquer debate ou votação. É mais prático e direto do que uma reforma eleitoral, sem financiamento público e voto em listas, nem riscos para o estado de direito e a democracia. Muito pelo contrário.
   Basta fazer como democracias civilizadas e definir, julgar e punir o "caixa 2" pelo que ele é: um crime mais grave do que o roubo para uso próprio. Porque lesa não só uma pessoa física ou jurídica, mas toda a sociedade, para fraudar o processo eleitoral e corromper a vontade dos cidadãos, desmoralizando as instituições democráticas e afrontando a lei e a Justiça.
   O "caixa 2" é um delito mais grave do que um simples roubo público ou privado como os que enchem os noticiários. Alguns desses ladrões são presos e o produto dos crimes pode ser recuperado. Mas os que roubam para fraudar o processo eleitoral, alegando que não é para uso próprio (embora às vezes seja), mas pela "causa", não são presos, não devolvem o dinheiro, nem pagam os irreparáveis prejuízos à democracia, são heróis da impunidade em seus partidos.
   "Ah, é só caixa 2". Alguém imagina o Obama dizendo isto? Nem Berlusconi ousaria. Aqui, presidentes de partidos e até da República dizem, considerando como atenuante o que é agravante. Seu corolário "todo mundo faz" minimiza e absolve o delito, e pereniza o atraso político.
   Por que Estados Unidos, Inglaterra, França e Itália julgam crimes políticos como mais graves do que os comuns, com cadeia e multas pesadas por conspiração contra o estado democrático e suas instituições?
   Talvez porque eles não têm esse jeitinho brasileiro de ser democrata, esse hábito de nivelar por baixo e de se contentar com pouco. Construíram democracias em que a lei é para todos, onde não há causa, por melhor que seja, que justifique a sua transgressão. Em ditaduras, leis espúrias podem e devem ser transgredidas na luta pela democracia, mas, quando finalmente a conquistamos, isto só a corrompe e avilta.
   Enquanto formos escravos desse passado, não há esperança de vencermos o medo de viver em uma democracia que seja realmente de todos.